Sem programa específico para refugiados, Brasil coloca centenas de sírios no Bolsa Família

Segundo governo, dos cerca de 2 mil refugiados sírios no país, cerca
de 400 são beneficiados por programa de transferência de renda.

O programador Ali*, de 34 anos, era um homem rico na Síria. Ganhava US$
4 mil (cerca de R$15 mil) por mês, tinha carro e foi um dos melhores
alunos da sua pós-graduação.

“Aqui no Brasil, sou pobre”, conta ele, que se mudou há um ano e sete meses para o país sul-americano fugindo da guerra civil.

Sem renda, a solução foi recorrer a um programa criado originalmente para retirar brasileiros da miséria: o Bolsa Família.

Assim como ele, cerca de 400 imigrantes sírios que vieram para o Brasil
estão no programa, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome. O número se refere a julho. A pasta não informou o
valor específico recebido pelos sírios – o benefício médio do programa é
de

R$ 167 mensais por família.

Após facilitar a entrada de refugiados sírios, o Brasil passou a ser o
país que mais recebeu pessoas desse grupo na América Latina. Segundo
dados do Ministério da Justiça, 2.097 refugiados sírios

vivem no país
atualmente – o maior grupo entre os 8.530 refugiados do Brasil, à frente
dos angolanos, que são 1.480.

Mas, sem falar a língua e em meio à crise econômica, muitos deles –
apesar de terem qualificação profissional ─ não conseguem emprego. O
governo brasileiro, diferentemente de outros países, não tem um programa
específico apenas para refugiados que ofereça diretamente ajuda
financeira a eles.

‘Renda zero’
O número de sírios no Bolsa Família tem crescido desde 2013, ano em que o Brasil facilitou a concessão de vistos.

Em dezembro daquele ano, sete famílias com pelo menos um sírio – ou
cerca de 25 pessoas ─ estavam entre os beneficiários do programa. Hoje,
são 163 famílias.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável
pelo programa, usa o número de famílias, e não de pessoas, para a
comparação.

No total, 15.707 famílias com estrangeiros estão no programa.

Para Larissa Leite, da Cáritas-SP, que atende refugiados, o número de sírios incluídos fica abaixo do esperado.

“Principalmente no período da chegada, os sírios têm renda zero. É preciso analisar o que está acontecendo.”

O secretário nacional de Renda de Cidadania do ministério, Helmut
Schwarzer, diz acreditar que o número de sírios no programa irá crescer.

“Possivelmente a gente ainda vai ter algum aumento. À medida que a
documentação das famílias for ficando pronta, que o direito de
residência for concedido, pode ser que mais famílias solicitem o 

benefício.”

Língua latina com palavras de origem árabe
Segundo a pasta, todo estrangeiro em situação regular no país pode ter
acesso ao programa se atender os critérios para inclusão. “O Bolsa
Família nunca teve um proibição de participação de estrangeiros. A lei
não os distingue dos brasileiros”, disse o secretário.

Para entrar no programa, é preciso que a família tenha renda mensal de
até R$ 77 por pessoa ou de até R$ 154 se houver crianças ou
adolescentes.

Ali*, que não quis ter o nome revelado porque não se sente confortável
com sua situação, descobriu que podia entrar no programa com a ajuda de
um vizinho.

Ele veio para o Brasil porque não queria fugir ilegalmente pelo mar
(rumo à Europa), o que seria perigoso e o deixaria a mercê de
traficantes de pessoas. Além disso, queria “um segundo país”, e não “um
lugar em que fosse ser tratado como refugiado para sempre.”

Ficou em dúvida entre Turquia e Brasil, mas optou pelo último porque
achou que aprender português, uma língua latina e com algumas palavras
de origem árabe, seria mais fácil.

Para chegar ao país, gastou mais de US$ 10 mil (cerca de R$ 37 mil).

Ficou em um hotel quando chegou, mas suas economias estavam se
esgotando muito rapidamente. Com isso, se mudou para um apartamento,
onde soube do Bolsa Família.

Ali* ganha R$ 386 por mês para sustentar, além dele, a mulher e três
filhos ─ que entraram em escolas brasileiras, uma das exigências do
programa.

O valor é 2,5% do salário que recebia na Síria.

Sem dinheiro para aluguel, alguns sírios vivem em ocupação em São Paulo (Foto: Gabriel A. l BBC Brasil)Sem dinheiro para aluguel, alguns sírios vivem em ocupação em São Paulo (Foto: Gabriel A. l BBC Brasil)

Comida e fraldas
Ali* diz que o dinheiro dá para comprar comida e fraldas. “Mas só para isso.”

“O maior problema é pagar o aluguel. O Brasil deveria ter uma bolsa refugiado, porque o aluguel é muito caro aqui”, diz ele.

A reclamação de falta de apoio é comum entre refugiados sírios.

“Mas tentamos fazer eles entenderem que a inclusão deve ser dentro da
realidade local. Estamos em crise. Estamos todos em crise”, diz Larissa
Leite, da Cáritas-SP.

Larissa afirma, no entanto, que os valores do programa ficam abaixo da necessidade dos refugiados.

“A inclusão de refugiados no Bolsa Família é super positiva – sinal de
que há um esforço manter igualdade. Mas, em algumas circunstâncias,
essas pessoas precisam de apoio maior, porque não falam

o idioma, não
conhecem a realidade brasileira”, diz ela.

“Não estamos defendendo qualquer tipo de diferenciação em relação à
população brasileira. Mas se o Brasil tem compromisso de proteção, essa
proteção tem que ser na área social também”, afirma.

O Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), ligado ao Ministério da
Justiça, afirma que a assistência específica aos refugiados no país é
feita por meio de repasses para Estados, municípios e organizações da
sociedade civil que fornecem auxílio com moradia, aulas de português,
cursos profissionalizantes, assistência jurídica e psicossocial e, se
for preciso, ajuda financeira.

O Conare anunciou na semana passada a liberação de R$ 15 milhões de
crédito extraordinário para assistência a refugiados e imigrantes. Além
de serem enviados a estes parceiros, os recursos, de acordo com o órgão,
também servirão para “consolidar uma rede de centros de referência e
acolhida

para imigrantes e refugiados”.

Sem tempo para planos
A inclusão de refugiados sírios no programa divide especialistas.

Sonia Rocha, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets),
acha que os refugiados não deveriam estar no Bolsa Família.

“Isso mascara o problema e tira o foco. Precisamos de mecanismos próprios para refugiados nas instituições”, diz ela.

“A pobreza deles é temporária ─ a situação se aproxima muito mais
daquela de quem perde o emprego e ganha o seguro-desemprego do que de
quem é extremamente pobre e precisa de um programa de combate à
miséria.”

“É uma situação conjuntural, não estrutural.”

Já a coordenadora do Centro de Estudos sobre Desigualdade e
Desenvolvimento da Universidade Federal Fluminense, Celia Kerstenetzky,
avalia que a situação deve ser vista no contexto da “mais profunda crise
mundial de refugiados em décadas.”

Para ela, como as condições são emergenciais e o Brasil não tem
tradição de receber refugiados, “uma resposta imediata humanitária
possível me parece ser sim incluir essas famílias no nosso

principal
programa público de transferência de renda.”

“Não há tempo para planos e muita racionalidade”, afirma.

“Os sírios podem ter boas oportunidades no mercado de trabalho no médio
ou talvez até mesmo no curto prazo, mas enquanto elas continuarem
dentro da faixa de renda prevista para o Bolsa Família, o benefício vai
continuar sendo pago”, conclui o secretário Helmut Schwarzer.

*nome fictício

Colaborou Luis Kawaguti, da BBC Brasil em São Paulo

postado por Raimundo Lima

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