O abuso da palavra “genocídio”

Ao indignar-se pelas mortes na pandemia, Gilmar acertou no conteúdo, mas errou na forma

Um jurista do nível do ministro Gilmar Mendes, doutorado na Alemanha e conhecedor profundo da história daquele país, deveria escolher melhor suas palavras. Quando disse que “o Exército está se associando a esse genocídio”, numa referência à pandemia, Gilmar pode ter até acertado no conteúdo – mas errou na forma.

A palavra “genocídio”, usada pela primeira vez no tribunal que julgou os crimes nazistas em Nurembergue, depois adotada na Convenção do Genocídio de 1948, é adequada para definir o massacre de 8.400 muçulmanos por sérvios da Bósnia em Srebrenica, que completa 25 anos nesta semana. Ou o extermínio, em 1994, de 800 mil tutsis e hutus moderados em Ruanda. Ou ainda o morticínio de quase 2 milhões de cambojanos pelo governo comunista do Khmer Rouge entre 1975 e 1979. Mas não a pandemia.

Em cada um dos casos citados, assim como no dos 6 milhões de judeus exterminados pelos nazistas, o alvo era um grupo étnico, religioso ou nacional. Pela definição do jurista Rafael Lemkin, que cunhou o termo quando auxiliava a acusação no julgamento de Nurembergue, o crime de genocídio é cometido contra uma coletividade definida. É assim que ele consta do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional em 1998.

Para definir genocídio, Lemkin se inspirou na absolvição do estudante armênio Salomon Teilirian, acusado, durante a República de Weimar, de matar um dos responsáveis pelo morticínio dos armênios na Turquia, no início do século XX. Como os armênios, os judeus haviam sido exterminados pelo simples fato de ser judeus. A essência do crime de genocídio, na definição de Lemkin, é ter como alvo um grupo enquanto tal, caso tanto dos armênios quanto dos judeus.

Em Nurembergue, porém, ninguém foi condenado por genocídio. A palavra nem sequer foi pronunciada nas sentenças à morte de 12 dos 22 réus presentes no final do julgamento (àquele altura, um já havia se matado e outro estava foragido). Lemkin, que assistira apenas ao início, acompanhava à distância. Quase todos os 21 nazistas condenados em Nurembergue foram sentenciados não por genocídio, mas por “crimes contra a humanidade” (três dos 24 réus originais foram absolvidos).

A distinção entre “genocídio” e “crime contra a humanidade” não é uma firula jurídica. Enquanto Lemkin defendia que a lei refletisse o motivo real do extermínio – indivíduos foram mortos porque faziam parte de um grupo –, um outro jurista via dificuldades em demonstrar esse tipo de crime. Seu nome: Hersh Lauterpacht. Ambos, Lemkin e Lauterpacht, eram judeus oriundos da mesma região e haviam se formado na mesma faculdade de direito, na hoje ucraniana Lviv (antes polonesa Lvov ou austríaca Lemberg).

Lauterpacht acreditava que as leis protegendo grupos étnicos poderiam despertar sentimentos tribais e ter consequências indesejadas. Para ele, o mais importante era proteger os indivíduos atingidos enquanto indivíduos, não como grupo. Daí sua definição do extermínio, da barbárie e da tortura como crimes “contra o gênero humano” ou contra toda a humanidade.

Eis como resume a questão o jurista britânico Philippe Sands em Rua Leste-Oeste, obra essencial sobre o tema (leia mais aqui): “Lauterpacht e Lemkin estavam agudamente divididos nas soluções propostas a uma grande questão: como poderia a lei evitar o assassinato em massa? Proteja o indivíduo, diz Lauterpacht. Proteja o grupo, diz Lemkin.”

Embora Lauterpacht tenha sido o cérebro por trás da acusação que condenou os nazistas em Nurembergue, a ideia de Lemkin se tornou mais influente. “Genocídio” se tornou uma espécie de termo genérico para definir qualquer atrocidade. A maior parte dos crimes contra os direitos humanos, contudo, não configura genocídio.

Os crimes do regime militar são um exemplo. A tortura e a barbárie nos porões da ditadura não tinham como alvo um grupo étnico ou religioso. Mas foram sem dúvida crimes contra a humanidade, comprovados e documentados – embora jamais julgados, em virtude da Lei da Anistia.

Passada a pandemia, será um desafio comprovar juridicamente que a morte de dezenas de milhares de brasileiros resultou da política desastrosa do governo Bolsonaro. Hipoteticamente, seria até possível construir, com base em evidências científicas, relatos e documentos, uma acusação de crimes contra a humanidade.

Gilmar pode até ter razão, portanto, em apontar para o envolvimento dos militares, hoje incrustados no Ministério da Saúde, nas políticas sem respaldo científico que têm contribuído para aumentar o número de mortos. Mas a palavra “genocídio” deveria ser reservada para casos em que se justifica – como Camboja, Ruanda e aquele que todos temos o dever de lembrar nesta semana: Srebrenica.

G1

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